Fabulação Especulativa
8 min readMar 30, 2024

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Succession (Jesse Armstrong, 2018-2023)

Considerações sobre a série Succession (Jesse Armstrong, 2018-2023)
por Guilherme Preger*

Succession é uma série de televisão, pelo canal HBO, com 4 temporadas, escrita por Jesse Armstrong e produzida por Adam Mckay. Conta a história da família Roy, descendente de irlandeses em Nova Iorque, liderada pelo patriarca Logan Roy (Sean Cox) e donos do conglomerado de mídia Waystar e outros negócios, cujo carro-chefe é um canal de TV de direita, ATN, assemelhado não casualmente à Fox TV. Os protagonistas da série, além do patriarca, são seus quatro filhos, Connor (vivido por Alan Ruck), filho de seu primeiro casamento, e Kendall (Jeremy Strong), Roman (Kieran Culkin) e Siobhan “Shiv” Roy (Sarah Snook), a caçula, filhos do segundo casamento, de quem Logan é divorciado. No início da série ele está casado com Marcia (Hiam Abbass), sua terceira mulher. Além dos Roy, despontam com grande interesse os personagens Tom Wambsgans (Matthew Macfadyen), marido de Shiv, gerente da ATN, e Greg Hirsch (Nicholas Braun), neto de Ewan Roy, irmão de Logan e primo dos seus filhos que, instado por sua mãe, procura se aproximar da família.

A família Roy é bilionária e goza de grande prestígio político, porém o patriarca, que fez 80 anos, sofre, logo no primeiro capítulo, um AVC, colocando em dúvida sua saúde, bem como sua lucidez. A partir daí se inicia uma disputa entre os filhos por quem será o sucessor do pai. Porém, Logan recupera sua saúde, retorna o controle total das empresas e começa a jogar com o desejo dos filhos por substituí-lo, pois não confia em nenhum deles. Sobretudo o segundo, Kendall, que se considera o verdadeiro sucessor do pai, e o mais preparado entre os filhos para substituí-lo.

Durante quase 5 anos, a série se arrasta narrativamente nas disputas familiares e nos negócios da Waystar, que passa por dificuldades. O contexto, além do ocaso de um grande homem de mídia, tema muito abordado no cinema americano desde o Cidadão Kane, está na transformação pela qual passa o negócio da informação, a passagem do modelo centrado nas mídias difusoras como a televisão para o mundo da internet, dos jogos e das mídias sociais. Mas Logan Roy é um magnata old style e self-made man, e parece não querer abrir mão de suas convicções de negócio. Já seus filhos, sobretudo Ken, acreditam que a empresa precisa mudar.

Como outras séries nos últimos anos, Succession aborda a vida dos “super-ricos” do capitalismo tardio, da acumulação indecente de riqueza abstrata. Os super-ricos padecem da sensação de que sua fortuna é volátil e pode desaparecer de uma hora para a outra. Há uma opacidade na vida deles que incita a curiosidade do público comum. Seriam esses super-ricos os novos semideuses do mundo contemporâneo? Ou seriam soberanos tecnofeudais? Eles parecem mais poderosos do que chefes de Estado. A série sugere que há um sentimento de onipotência entre eles. Seus empregados são submissos, como novos serviçais ou vassalos, e as pessoas que os rodeiam parecem sempre interessados por sua riqueza.

Succession acentua essa sensação de potência ilimitada, da desmesura no exercício do poder. Muitas vezes os empregados da família Roy são colocados em situações constrangedoras de abuso. Alguns dos negócios do grande conglomerado, envolvendo os parques de diversão, são objeto de graves denúncias de abuso, que a família procura esconder. Mas os filhos de Logan também não escapam de suas decisões que parecem arbitrárias. Porém, eles próprios gostam de exibir, mais do que exercer, o poder.

Desde o início, a série procura assumir uma dramaturgia quase shakespeariana, sobretudo sob influência de Rei Lear. Escolheu para protagonista um ator clássico de teatro, Sean Cox, que desempenhou vários papéis de Shakespeare. Neste caso, a intriga do roteiro se daria em torno das míticas relações de disputa entre Pai e Filhos, em tons também freudianos: os filhos unidos não só para disputar seu legado, mas para destruir a própria figura paterna. Lembrando que Freud colocou o “assassinato do Pai” como o início da civilização. Assim, a destruição de Logan Roy, cujo sobrenome precisamente lembra a figura do rei, daria início a uma mídia mais “civilizada”, afastada das crenças da extrema-direita que tomaram conta de sua emissora. A filha mais nova, Siobhan, conhecida como Shiv, inclusive, é RP de um político de esquerda, que combate justamente a ideologia de direita, semi-fascista, da qual a Waystar é tributária. Shiv, de fato, tem algo de Cordélia: está contra seu pai, mas ao mesmo tempo lhe é a mais fiel. Ela é casada com o personagem mais servil a Logan, seu marido Tom, CEO da emissora ATN. Mas, ao contrário de Cordélia, Shiv é verdadeiramente interesseira e manipuladora.

O problema é que a inspiração trágica do roteiro de Succession se perde rapidamente ao longo das temporadas. Em primeiro lugar, Logan Roy não é o Rei Lear. Aliás, ele está mais para Logan, o herói de Wolverine, do que de um reinado mitológico: é algo indestrutível e, no início, sua saúde vulnerável parece ser totalmente eclipsada pelo seu lado invencível. Em várias passagens Logan repete que ele “nunca perde”. E realmente a série não dá mostras da vulnerabilidade do rei, tão pungente na peça de Shakespeare. Por sua vez, o personagem de seu filho Kendall, que seria entre todos o mais trágico, se torna o mais patético. Kendall está mais próximo do Ken, parceiro da Barbie, pelo seu lado fútil, sua ambição vazia, sua incapacidade de lidar com as mulheres e de assumir a função paterna (é o único que tem filhos). Ou seja, de ser um verdadeiro Pai.

Mas o que mais afasta esse drama do enredo trágico foi a escolha formal pelo naturalismo da série. Ao contrário de outra série que aborda o mesmo mundo de riqueza e ostentação, White Lotus, que assumiu um tom alegórico, os autores de Succession, sobretudo o diretor de cinema Adam McKay (do filme Vice), preferiram adotar um tom naturalista de descrição que capta as ações dos personagens de forma direta, semi-imediata. Para isso, lançaram mão da cinematografia do mocumentário (mockumentary), a forma do pseudo-documentário criada num estilo de vanguarda pelo cinema europeu do Dogma 95, que se utiliza de técnicas naturalistas, como uso de locações reais, luz e som diretos e sobretudo o uso da “câmera-na-mão”, para obter um efeito de hiper-realismo. Com isso, a série conseguiu enfatizar realmente o lado mais cotidiano e comezinho da vida de seus personagens.

O resultado dessa opção estética foi tirar o glamour e o obscurantismo desses super-ricos, que são observados à maneira de “gente-como-a-gente”, em seus dramas cotidianos, bem como em seu comportamento cheio de fraquezas humanamente compreensíveis. O efeito desse naturalismo tem algo de satírico: a sensação de onipotência gerada pela riqueza desmedida se esvai no vazio existencial e na clausura social. Mas essa perda de potência acaba por ser o motor para a geração ininterrupta de cinismo. Nesse aspecto, dois personagens se destacam na exibição derrisória de cinismo: do lado da família, Roman Roy, filho do meio de Logan, vivido pelo ator Kieran Culkin, personagem sexualmente incapaz que extravasa seu mal-estar com piadas e tiradas de tom obsceno. Roman, sempre frustrado pela pouca confiança do pai, parece ter mais consciência do que os demais da posição social vazia ocupada pela família (“we are nothing”, diz ele numa de suas principais falas). O outro é Tom, marido de Shiv, que assume uma posição explicitamente servil. Sendo de origem “provinciana” (ou seja, não novaiorquina), ele é um personagem tipicamente literário, um arrivista e alpinista social, tão manipulador quanto manipulado. Não por acaso, seu nome parece uma homenagem a Tom Stoppard, o dramaturgo autor da peça Rosencrantz & Guildenstern Are Dead. Esta peça é referência a dois personagens menores, servis e corruptos, de Hamlet, cujo destino é servir de escada para uma armação do Príncipe da Dinamarca. Esse papel, na série televisiva, é reservado à dupla Tom e Greg, o sobrinho igualmente arrivista da família, que são personagens marginais ou marginalizados do núcleo da família e os quais são sempre escalados para tarefas ingratas. Greg, em particular, é o personagem mais teatral da trama: ele é ao mesmo tempo o escada, o bobo (clown), o curinga (joker). Numa série altamente naturalista, ele tem papel insólito e diáfano, estando em todos os lugares e em todos os lados, fazendo um papel de mediação nas disputas entre egos e entre as classes.

Assumindo um papel explicitamente cômico, paródico e antinaturalista, Greg acaba por dar ao realismo da visada sobre a família um sabor especialmente novelesco, no sentido de uma “soap opera”, como de fato se revela a série televisiva. O sentido originalmente dramático e trágico da autofagia familiar acaba, pela opção naturalista, ganhando um tom satírico, distanciando-se de Rei Lear e se assemelhando a Much ado about nothing. O que deveria ser uma discussão de base freudiana sobre o complexo familiar acaba se tornando rapidamente um enredo de intrigas menores, celeumas, sobre o comando da empresa. Contribui sobretudo para isso o enclausuramento da trama que se fecha em torno do núcleo familiar. O “mundo exterior” é quase sempre ignorado, ou observado com desdém, e disso não escapam nem os candidatos à presidência da maior potência global, que precisam “beijar a mão” do dono da Waystar.

O estilo naturalista é acentuado pela escolha, acertada, de atores não tão conhecidos do público, ou mesmo estando em ostracismo (caso de Alan Ruck, do filme Curtindo a vida adoidado). Eles cumprem com eficácia sua função de viver personagens muito próximos de suas existências comezinhas. Mas essa busca por hiper-realismo termina por prejudicar todo o viés de autocrítica da narrativa. Embora muitas vezes os personagens se voltem para atividades grosseiramente ociosas, ou a série descambe para a exibição quase pornográfica de riqueza, como as frequentes viagens jatos, helicópteros e iates, ou nas muitas cenas em que os Roy gratuitamente destratam seus subordinados, tudo isso soa mais cínico do que grotesco, não parecendo a série sofrer de uma reflexão crítica imanente. Não há uma contraposição para se opor à imoral concentração de renda e poder da família. O único personagem que parece ser “fora de classe”, Greg, é contraditoriamente neto do irmão de Logan, Ewan, que é acionista da empresa e, embora leve uma vida mais austera, é também um super-rico. Assim, as contradições que poderiam vir das relações de classe não aparecem em cena.

O único personagem que realmente ameaça o clã, o sueco Lukas Matsson (Alexander Skarsgård) é alguém ainda mais rico do que a família. Seu antagonismo é antes de negócio, pois Lukas, dono de uma plataforma de jogos, é alguém vindo de um ramo de mídia que ameaça a hegemonia da mídia corporativa difusora, representada pela família Roy. Assim, toda a última temporada se passa tendo como foco a disputa entre Lukas e os Roy, que é antes uma disputa entre super-ricos, ou entre a riqueza da Europa ou dos Estados Unidos. Mas o descolado Lukas está bem longe de ser um exemplo da “cultura continental” dos europeus, se igualando mais em seu modo de vida dispendioso aos medíocres americanos.

Succession se torna assim um roteiro de intrigas sem solução. Como não apresenta as contradições sociais, também não mostra a via de sua superação. Como se diria, é uma série sem dialética. A narrativa não passa da encenação entre o pai infalível e os filhos cobiçosos. A oposição com Lukas não se transforma numa disputa geopolítica, ou pior, neste caso ficamos quase torcendo pelo pragmatismo corrupto norte-americano. Em muitas ocasiões a série parece nos levar a ter pena da infelicidade fracassada de Kendall, ou a achar graça do cinismo de Roman, ou a torcer pelo arrivismo de Greg. E curiosamente a série, por metade filmada durante a emergência de COVID (temporadas 3 e 4), mal cita os efeitos sociais da pandemia, nem o uso das máscaras. É como se a doença não existisse, ou fosse um problema do “mundo lá fora”. Fora obviamente do círculo fechado da classe dos bilionários. A única verdade que se revela é que dentro desse círculo não há possibilidade de emancipação.

*Guilherme Preger é engenheiro e escritor. É autor do livro Fábulas da Ciência (editora Gramma, 2021) e autor do blog Fabulação Especulativa (gfpreger.medium.com).

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Fabulação Especulativa

Experimentos Mentais, por Guilherme Preger, engenheiro de Telecomunicações, escritor e autor de Fábulas da Ciência (ed. Gramma, 2021), Rio de Janeiro