Fabulação Especulativa
4 min readMay 20, 2024

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Raja (ficção)

Zyan conseguiu colocar a família toda no Egito, gastando todas as economias de uma vida com o suborno de policiais egípcios. A mulher Maryam levou suas duas crianças de 12 e 10 anos, mas ficou desesperada quando o marido, na última hora, decidiu permanecer em Rafah. “Não saio de Gaza sem Raja”, disse Zyan. Raja é a filha mais velha, de 17 anos, que entrou para as forças de resistência palestina. Fazia cinco meses que Zyan e Maryam não viam Raja. Porém, há duas semanas receberam uma mensagem dela, indicando guardas alfandegários que, em troca de dinheiro, estavam atravessando palestinos para o outro lado da fronteira. 
Com seus 45 anos, Zyan ainda se vê com vigor para suportar as maiores provações. Não faz sentido imaginar que sua filha permaneça em terras palestinas, enquanto ele, o pai de família, foge covardemente para o Egito. 
Na mensagem enviada, Raja implorava para que seus pais levassem embora seus irmãos mais jovens. “Eu estarei bem”, ela disse. Mas Zyan duvidou disso. Ninguém está bem em Gaza. Ninguém sequer está vivo em Gaza. 
Nesse estado de emergência, toda a economia de Gaza se reduziu à luta brutal pela sobrevivência. No entanto, há muita solidariedade. Quando a família foi embora, Zyan se alinhou à distribuição humanitária de alimentos, remédios e água. Como é um homem ligado à construção civil, suas habilidades servem para ajudar muita gente. Em particular, Zyan é especialista em ligações elétricas e consegue religar geradores que parecem quebrados. Àquela altura, Rafah ainda não havia sido bombardeada, como o restante inteiro da Faixa de Gaza. 
Enquanto ajuda as pessoas, Zyan busca informações da resistência para saber o paradeiro de sua filha mais velha. Todos conhecem aqueles que estão na luta armada. Zyan é amigo de alguns companheiros do Hamas, mas esses são de mais difícil acesso. Há muitas frentes de luta em Rafah, nem todas ligadas ao Hamas, mas para os sionistas assassinos todo e qualquer palestino vale o mesmo do que um rato. Os israelenses sionistas não fazem qualquer diferença entre os militantes palestinos. Aqueles que vão sendo presos são torturados igualmente, como se cada um, de qualquer idade, fosse um combatente de supostas forças militares palestinas, que no entanto são sabidamente inexistentes, pois a Palestina nunca conseguiu ser um Estado político. Fora alguns membros do alto comando, que estão no Catar, ninguém realmente sabe do paradeiro dos cativos. A operação de outubro foi um primor de planejamento e de sigilo. 
Enquanto se ouvem os rumores sobre a aproximação das IDF às terras de Rafah, o último ponto de guarda para milhões de palestinos ainda vivos na Faixa de Gaza, Zyan percorre os prédios abandonados em procura de militantes que possam trazer alguma informação sobre Raja. São poucas as mulheres que participam da linha de frente da luta armada, pois a maioria das facções são exclusivamente masculinas, mas há aquelas anarquistas que, inspiradas na luta das guerrilheiras curdas, recrutam batalhões de mulheres para combater. Raja certamente está num desses. 
Zyan não encontrou sua filha, mas encontrou Najla, que conhece como a melhor amiga da filha. Najla também ingressou nas fileiras de combate, mas se descobriu grávida e teve de abandonar as facções. Agora corre contra o tempo para tirar o resto da família de Rafah. Muitas famílias já se retiraram, temerosas do ataque que se aproxima. Ninguém mais acredita que a ONU, e muito menos os Estados Unidos, irão realmente deter o Estado Sionista de invadir e ocupar Rafah. Todos imaginam o banho de sangue que virá. Rafah é o último ponto de chegada de ajuda humanitária, mas os sionistas querem que os palestinos deixem a cidade para campos de refugiados do interior, que estão totalmente inóspitos e nos quais a ajuda não chega. É um decreto final de fome, sede e morte, como todos sabem. 
Najla ficou apenas com sua avó que está sem capacidade física de se mover para o interior. Sua avó querida, que praticamente a criou, enquanto sua mãe ia trabalhar no Egito, quer agora ser deixada sozinha, mas isso é igual a uma condenação à morte. Nem sua gravidez convence Najla a deixar a avó morrer só. “Morreremos juntas”. “E seu filho?”, pergunta Zyan. “Meu filho morre comigo como um bom palestino”. 
“Eu irei levar vocês ao campo”, disse Zyan. Ele conseguiu arranjar um carro de obras puxado por burrico para levar os pertences de Najla e sua avó. O primeiro campo de refugiados fica a uma distância de 80 km. Zyan colocou as duas mulheres sobre o carro de obras e saiu caminhando com o carro sendo puxado pelo burrico. Ao seu redor mais um milhar de pessoas faz o mesmo pela estrada que sai de Rafah. 
Já estavam a vinte quilômetros de distância da cidade quando ouviram os primeiros estrondos derrubando os prédios de Rafah, a última cidade em pé de Gaza. É noite e o clarão do fogo ilumina a estrada. Pelo alto zunem os mísseis e drones israelenses. 
“Zyan”, gritou Najla, “vamos parar um pouco para descansar. Você deve estar exausto”. 
“Não, filha. Eu prometi à sua mãe e a Alah levar você de volta à casa”, respondeu o pai.

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Fabulação Especulativa

Experimentos Mentais, por Guilherme Preger, engenheiro de Telecomunicações, escritor e autor de Fábulas da Ciência (ed. Gramma, 2021), Rio de Janeiro