Fabulação Especulativa
8 min readMar 7, 2024

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Pobres Criaturas, Yorgos Lanthimos, 2023

(Resenha com spoilers)
O último filme do cineasta grego é uma releitura cinematográfica do clássico satírico do escritor escocês Alasdair Gray (Poor Things: Episodes from the Early Life of Archibald McCandless M.D., Scottish Public Health Officer, 1992) e uma colagem audiovisual com materiais retirados de Frankenstein, o Moderno Prometeu, de Mary Shelley e da Ilha do Doutor Moreau, de H.G.Wells. Também tem referências à Metrópolis, de Fritz Lang, na menção à transformação químico-elétrica da ginóide em Maria. A sátira romanesca de Alasdair se transformou na passagem para a forma cinematográfica na ficção científica de steampunk, retrofuturista. É sobretudo uma fábula contemporânea sobre a emancipação feminina.

Assim como falamos em romance de formação, a feérica história de Bella Baxter nas telas (vivida pela atriz Emma Stone) é uma espécie de cinema de formação. Neste caso, como no romance do escritor escocês, trata-se de uma inversão da narrativa de Frankenstein, que também é alegoricamente uma narrativa de formação: nesta, a criatura é monstruosa e o criador é sedutor. Em Pobres Criaturas, a criatura é sedutora (“Bella”) e seu criador God (vivido por Willem Dafoe) é monstruoso. Mas em ambos, a criatura passa por uma trajetória de aprendizado a partir da “tábula rasa” de sua mente. Em ambos os casos, a literatura tem um papel importante na formação das personagens.

Mas a literatura também serve nos dois casos para equivocar o enredo, torná-lo ambíguo. No romance de Alasdair, quem narra a história é o marido de Bella, Archibald McCandless, porém, assim como em Frankenstein, a criatura exige ter a sua voz ouvida para contar sua própria história. Como nos romances de Shelley e Gray, Bella é também uma personagem quimérica, ao mesmo tempo mulher e criança, uma criatura que possui uma relação umbilical com seu criador, mas que ambiciona construir sua própria autonomia.

E há muitas histórias sendo contadas nessa fábula que é ao mesmo tempo literária e cinematográfica. Por exemplo, o cientista, protocirurgião e vivisector God (Dafoe) é mais calcado no fabuloso Doutor Moreau do que em Victor Frankenstein. Ele carrega uma crença no papel progressista da ciência, tornando o positivismo sua profissão de fé. Seu palacete é como uma ilha isolada, onde poucos entram. Sua dedicação à ciência tem uma característica quase monacal, mas também algo amoral: God não se questiona se suas criações são legítimas ou não. Por isso, sua pesquisa científica precisa ficar afastada dos olhos do público, como se fossem crimes. Suas costuras anatômicas entre entes diversos produzem seres híbridos como quimeras para o suposto progresso científico. Essas costuras são também o modelo estético para a colagem cinematográfica, realizada pelos remendos ficcionais entre literatura e cinema.

Ao mesmo tempo, God é abreviação de Godwin Baxter, uma referência a William Godwin, filósofo romântico e progressista britânico, pai de Mary Godwin, que vem a ser Mary Shelley, criadora de Frankenstein. E sabemos também que a mãe de Mary Shelley, mulher de Godwin, era Mary Wollstonecraft, uma das mais importantes feministas da história, autora de Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher, de 1792. Imaginamos que a trajetória fabulosa de Bella Baxter vem a ser tanto baseada alegoricamente na vida da criatura de Frankenstein (que a exemplo de Bella também percorre as terras europeias), como uma reivindicação pelos direitos da mulher proposta pioneiramente por Mary Wollstonecraft, que morreu durante o parto da filha escritora, assim como Victoria, mãe de Bella, morre sem conhecer a sua.

Se a ficção de Mary Shelley era uma fabulação gótica e medievalista, o novo filme de Lanthimos é exemplo da estética steampunk: uma figuração do século XIX que poderia ter sido e não foi, como num modo temporal de futuro do pretérito. O caráter fabuloso da obra é obtido pela reconstrução digital dos cenários. No romance, o aspecto medieval identifica a personalidade de Victor Frankenstein com a “doutrina antiga” da ciência, alquímica e esotérica que se confronta com o caráter público e “aberto” da nova ciência. Na obra cinematográfica de Lanthimos, o caráter retrofuturista liga a trajetória da protagonista à promessa de emancipação presente no desenvolvimento da ciência e na política secular socialista.

No filme atual, Archibald, o narrador do romance de Alasdair, se torna Max (vivido por Ramy Youssef), que não narra a história, mas a testemunha. Se, no romance, Bella Baxter acusa o marido de distorcer os fatos de sua vida, ao lhes atribuir conotações românticas e góticas, no filme Max será o único personagem a não pretender capturar e prender o corpo desejoso de sexo e conhecimento de Bella. Neste aspecto, o cinema anterior de Lanthimos tem uma influência considerável nesta releitura, pois suas principais obras, como Dentes Caninos (2009), A Lagosta (2015) e A Favorita (2018), lidam com sentimentos de clausura e isolamento, seja a residência familiar no primeiro, o hotel no segundo e o palácio real no último. Em Pobres Criaturas, Bella Baxter consegue escapar da prisão familiar e laboratório científico para seguir seu próprio desejo, embora com ajuda do advogado canastrão Duncan Wedderburn (vivido por Mark Ruffalo).

A tórrida viagem de Bella e Duncan se inicia por Lisboa. É inicialmente uma viagem dos sentidos, tanto libidinais, quanto gustativos. Essa Lisboa retrofuturista liga o passado ao futuro, com seus bondes aéreos, e desponta como um lugar de cores, luz e sensualidade, mas onde também a música de fado aparece trazendo elementos de emoção. Bella está sendo, a princípio, “educada sentimentalmente” por Duncan nos prazeres da vida. Mas já nesse momento, Bella se torna fugidia ao controle de seu parceiro de viagem, e eles partem para um cruzeiro pelo Mediterrâneo. O navio do cruzeiro é outra metáfora de clausura. Duncan, que primeiramente surgiu como o personagem a introduzir a liberdade e a aventura na vida da protagonista, começa então a aparecer como um controlador da autonomia da mulher.

No cruzeiro, o casal conhece Martha von Kurzrock (vivida pela grande atriz alemã Hanna Schygulla) e o cínico americano Harry Astley (vivido por Jerrod Carmichael). É este casal que irá introduzir a literatura e a filosofia à formação de Bella. A personagem de Hannah é certamente uma menção ao magnífico cinema de Fassbinder, modelo autoral para a produção de Lanthimos, mas também é uma irônica referência à Alemanha, aquela mesma que travou uma queda de braço com a Grécia após a eleição do partido Syriza. É preciso lembrar que Lanthimos é egresso da Nova Onda do cinema grego, surgida no mesmo caldo de cultura contestadora que gerou o Syriza, único partido de extrema-esquerda que chegou ao poder na Europa, mas que foi esmagado em seguida pela intolerância da austeridade econômica imposta pela Alemanha à União Europeia. Martha/Hannah representa assim uma Alemanha clássica, goetheana de um lado, e uma Alemanha decadente, para a qual Fassbinder foi o grande profeta.

O americano negro Harry, no entanto, é mais importante para a formação de Bella. Primeiro, porque Harry é confessadamente um cínico e ensina à Bella as virtudes desse cinismo. Bella utiliza esse aprendizado contra Duncan, quando este joga seus livros no mar: “você está no meu sol”, ela lhe diz pedindo para que se afaste. Como se sabe, esta é uma frase do criador do cinismo, o grego Diógenes de Sínope que a usou em relação a Alexandre, o Grande quando este veio lhe visitar em seu barril (devo a recordação dessa passagem a meu amigo Igor Dias em texto em seu blog http://kelloon.blogspot.com/2024/02/pobre-criaturas-uma-saga-epistemologica.html). Seria esse cinismo o modo como o próprio Lanthimos observa o mundo e Harry então seria seu porta-voz dentro da narrativa? O cinema do diretor grego de fato oscila entre a irreverência e o cinismo. Seu lado amoral e “desconstrutivo” tem uma veia anarcopunk peculiar que pode realmente passar como exibição de cinismo estético, de “anything goes”.

No entanto, o cinismo de Diógenes não é o cinismo moderno de Harry. O movimento cínico grego é uma defesa da autossuficiência, da virtude e da pobreza, enquanto o cinismo moderno representa antes uma posição de indiferença às desigualdades e injustiças do mundo. Harry sugere a Bella recusar tanto o capitalismo quanto o socialismo e abraçar o cinismo como modo de existência. Mas Harry é também um defensor da parrésia (Parrhesia), a coragem de dizer a verdade que era o mais importante princípio da escola cínica. Nesse aspecto, o passo decisivo se dá quando Bella apresenta sua visão ingênua do mundo e Harry a leva para visitar os infernos subterrâneos de Alexandria (outra menção à Alexandre) onde, em vez de bibliotecas suntuosas, há crianças morrendo de fome e sendo abandonadas. Esse momento é um grande choque moral para Bella, que mentalmente é ainda uma criança, pela sua simpatia com aquele povo sofredor. Se para Harry este é um momento de trazer a verdade crua e nua, a reação da protagonista ao momento é de um “corte epistemológico” e uma virada existencial.

Essa virada leva Bella e Duncan à Paris, o casal completamente sem dinheiro. Enquanto o segundo entra em desespero, Bella literalmente “vai à luta”. Sua permanência na Casa de Tolerância de Madame Swiney (vivida pela atriz Kathryn Hunter) é outra etapa de sua formação. Swiney é não exatamente cínica, mas pragmática. Quando Bella lhe diz que está em busca de sua emancipação, ela comenta que isso é “música para meus ouvidos”. É em Paris, vivendo e ganhando como prostituta, que Bella contraria o pessimismo de Harry e começa a se instruir no socialismo com ajuda de sua amiga de profissão, também negra como Harry, Toinette (vivida por Suzy Bemba). Com esta, Bella aprende que elas são seu próprio “meio de produção”. Por isso, a passagem de influência de Harry para Swiney e Toinette marca o ponto de virada em que Bella se desfaz do cinismo propagado pelo americano.

A sequência narrativa é então o caminho de sua emancipação como mulher: ela pede Max em casamento, lhe devolvendo o pedido que ele mesmo lhe tinha feito anteriormente. Embora isso não possa ser exatamente tomado como um ponto de emancipação, o arco narrativo que vai do pedido nupcial de Max à Bella e retorna do pedido de Bella à Max fecha a reviravolta (peripécia) de sua transformação. Ou quase: quando tudo parecia terminar num final feliz, a trama prossegue ainda para um momento de vingança que não convém aqui descrever. Muitos viram nesse desenlace final elementos de crueldade e perversidade. E aqui é preciso retornar à própria ambiguidade do romance que lhe serve de modelo, Frankenstein. A criatura ficcional criada por Mary Shelley não era exatamente o modelo amoral da vítima e também de crueldade que tanto horrorizou os contemporâneos de Shelley?

O ato cruel de Bella Baxter precisa ser lido dentro dessa sua chave da revolta da criatura contra o criador, tantas vezes encenada na literatura e no cinema. Mas enquanto a criatura de Frankenstein se vinga de seu criador, sem nunca, no entanto, lhe acertar diretamente, Bella se vinga de seu “pai” biológico, que a concebeu “naturalmente”, mas que ela não reconhece como seu criador. Nessa crueldade de Bella há tanto um elogio à artificialidade das construções contra aquilo que é “naturalmente criado”, como também é expressão feroz de independência e de luta por autonomia que se vê a todo momento negada e ameaçada. E aqui retornamos à característica mais proeminente do cinema grego de Lanthimos: não é sua forma irreverente, independente e cáustica a expressão de uma revolta estética à própria situação de seus país natal que, de berço do iluminismo, foi relegado à condição de periferia explorada e subalterna da Europa meridional? Filme de grande produção, falado em inglês e oscarizável, Pobres Criaturas é ainda assim um filme quimérico, uma obra monstruosa, uma criatura ficcional incômoda na produção cinematográfica cosmopolita e globalizada.

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Fabulação Especulativa

Experimentos Mentais, por Guilherme Preger, engenheiro de Telecomunicações, escritor e autor de Fábulas da Ciência (ed. Gramma, 2021), Rio de Janeiro