O desafio de Marguerite (Anna Novion, 2023)
Le Théorème de Marguerite conta a história de Marguerite, jovem estudante de matemática que está a preparar uma tese sobre a “conjectura de Goldbach”, uma das mais antigas e famosas hipóteses não provadas na história da matemática. Esta conjectura foi proposta pelo matemático Christian Goldbach em 1742, numa carta enviada a Leonhard Euler. Goldbach não era exatamente um matemático, no sentido “científico” do termo, mas fazia da atividade seu hobby e gostava de charadas que apresentava a seus amigos, entre os quais Euler. Desde então a conjectura nunca foi 100% provada. A conjectura diz que todo número par maior que 2 pode ser obtido pela soma de dois números primos. Esta conjectura funciona para uma grande quantidade de números pares, mas não foi comprovada para todo e qualquer número superior a 2. O matemático húngaro Endre Szemerédi chegou perto oferecendo teoremas que servem de “escada” para solucionar o problema de Goldbach.
No filme de Anna Novion, Marguerite (vivida pela atriz Elle Rumpf) está próxima da comprovação, e precisa apresentar seu trabalho de 3 anos numa espécie de qualificação na ENS, École Nationale Superière, importante instituto de pesquisa francês. Ela é orientanda do matemático Laurent Werner (vivido pelo ator Jean-Pierre Darroussin) que dedicou a vida inteira ao teorema, porém sem êxito. Ele aceita orientar outro estudante do mesmo tema, Lucas (vivido por Julien Frison), jovem aparentemente arrivista, que na qualificação, diante da audiência, revela uma falha fatal na prova de Marguerite que invalida toda sua pesquisa. Diante de seu fracasso, o orientador Werner sugere que Marguerite mude de tema, mas decepcionada com a atitude de seu professor, ela decide abandonar por completo a matemática.
É então que Marguerite, uma garota com vários travamentos afetivos, vai viver a “vida verdadeira” das garotas de sua idade. Ela se apresenta em concursos para conseguir um emprego banal e conhece a dançarina Noa com quem se tornará colocatária de um apartamento numa região periférica de Paris, dominada por chineses. Ela aprende a jogar Mahjong e se torna uma campeã das rodas de jogo clandestinas a dinheiro, ganhando muito mais do que num emprego “normal”. Mas essa atividade provoca preocupação em sua mãe, professora do ensino médio (vivida pela atriz Clotilde Courau), que pede o seu retorno à matemática, sua grande paixão.
E, de fato, a matemática é a verdadeira paixão de Marguerite. Uma das belezas do filme de Novion é ser uma obra sobre a paixão, mas não simplesmente aquela afetiva, de uma pessoa por outra, mas a paixão no sentido de um engajamento existencial numa prática que não possui uma explicação racional, e cuja recusa parece ser uma traição muito mais grave do que uma traição amorosa. Assim, Marguerite, que vai viver a “vida real” após seu abandono da matemática, enfrentando problemas cotidianos que outros e outras também sofrem (como conseguir um emprego, pagar o aluguel, ir às baladas, namorar, etc), se vê novamente impelida a continuar sua pesquisa. E isso se dá a partir de lampejos (insights) casuais que ocorrem nesses momentos cotidianos, seja jogando mahjong, ou vendo uma figura caída de cabeça para baixo no chão. Um dos interesses mais fortes deste filme, que contou com a orientação da matemática francesa Ariane Mézard, é habilmente apresentar o estudo e o trabalho científico (matemático) como atos de paixão, que se justificam por si próprios.
Outro ponto forte é que Marguerite retorna a procurar seu grande rival Lucas para juntos trabalharem numa prova a partir de um dos insights casuais de Marguerite. Mais do que criar a oportunidade de contar mais uma banal história romântica amorosa, a diretora (que escreveu o roteiro do filme) deseja mostrar que a construção de uma prova matemática não é um ato solitário, mas sim solidário, que necessita igualmente de cooperação e colaboração. Marguerite vai justamente buscar o que havia faltado anteriormente em sua tese original, quando trabalhando sozinha não tinha sido capaz de perceber o erro em sua prova.
A certo momento do filme, o orientador Werner diz à pupila que a matemática pode ser um abismo vertiginoso para quem se envolve apaixonadamente, do qual não há retorno. Ao fracassar em também abandonar a matemática, Marguerite descobre isso. Mas ela mesma sabe que a busca pela solução da conjectura é tal que envolve a verdade, como diz à sua amiga bailarina. Mas essa busca através da verdade não supõe o abandono das coisas mais elementares da vida. O desafio (ou a prova) de Marguerite está em provar mais este teorema.