Fabulação Especulativa
5 min readMay 17, 2024

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Bebê Rena (Baby Reindeer, série, 2024, de Richard Gadd)

A série escocesa campeã de audiência da plataforma de vídeo sob demanda Netflix é um exemplo do que é chamado de “autoficção”. Nesta, Donny é o alterego do próprio diretor Gadd, que procura se estabelecer como comediante de stand-up comedy em Londres, e enquanto ganha vida como barman conta, como narrador em off, a história de como foi stalkeado de maneira infernal por Martha (vivida por Jessica Gunnin), assim como foi abusado e enganado por Darrien (vivido por Tom Goodman-Hill), um roteirista de sucesso. Também narra seu relacionamento com a transsexual Terry (vivida por Nava Mau), terapeuta de profissão, por quem se apaixona. 
Martha é uma stalker “profissional”, com antecedentes criminais no mesmo crime. A partir de um ato de boa vontade de Donny, que lhe serve uma xícara de chá gratuita no bar, ela passa a persegui-lo diariamente, pessoal e virtualmente, lhe enviando centenas de mensagens e aparecendo nos mesmos lugares onde ele está. A perseguição torna-se muitas vezes violenta e a vida de Donny se torna um inferno, até que ele decide denunciá-la à polícia (esta é a primeira cena da série). 
A concisão da série, com sete capítulos geralmente curtos, com menos de trinta minutos é um dos seus trunfos. Outro fator de sucesso é a trilha sonora de rock que remete à cena pós-punk britânica. No entanto, essa trilha, cuja contratação certamente representou uma parte considerável do orçamento, parece feita para seduzir o espectador mais do que para o informar esteticamente. Os acontecimentos ocorrem num tempo recente, já de celulares e mídias sociais. 
A série chama a atenção por questões éticas e morais complicadas. De início, o ato de stalkeamento, ou perseguição, de criminalização recente, é um evento que assombra a moralidade contemporânea. Em geral, questão atribuída a problemas psíquicos dos abusadores que, em outras épocas, foram considerados loucos. O cinema já tratou de casos semelhantes de maneira bem mais delicada. O exemplo maior é o filme “Adele H” de François Truffaut, contando a história real da filha do poeta Victor Hugo, que perseguiu um oficial da Marinha francesa através do globo, no século XIX. A loucura de Adele se tornou mais tarde conhecida como a síndrome de Clérambault, ou Erotomania. Clérambault era um médico-psiquiatra de polícia que escreveu sobre casos, geralmente femininos, de perseguições amorosas. Este médico classificou esses casos como tipos de desordens mentais, nos quais quem sofre do transtorno não apenas se diz apaixonado pelo seu alvo, mas tem absoluta certeza de que o alvo lhe corresponde aos anseios. 
Recentemente, os casos de perseguição são considerados desprovidos de sentimentalismo romântico e considerados casos de polícia. O transtorno mental é “dessentimentalizado” e criminalizado. Zonas de contenção e distâncias de afastamento são comuns em sentenças judiciais. É como criminosa que a personagem Martha é tratada, embora no início Donny tenha dificuldade de convencer a polícia de seu caso. De qualquer maneira, Martha é retratada de fato na série ficcional como uma personagem que tem algo de uma psicopata agressiva. Mas tudo se complica moralmente, pois Martha tem problemas de obesidade e é solitária, e isso pesa em sua caracterização como um possível preconceito. Mas não é só por isso que a série tem elementos morais complicados. 
A princípio, a narração de Donny parece ensejar mais autocomiseração do que o sentimento de compaixão do espectador. Desde o início parece ficar claro que existe um jogo de cumplicidade na relação entre Martha e Donny. Sendo um fracasso como comediante de stand-up, Donny parece retirar um estranho gozo de ser o objeto de perseguição e desejo de Martha. É precisamente esta cumplicidade que Terry, sua namorada-terapeuta, lhe acusa. Assim, a série parece dar um passo além de ilustrar mais um caso de “síndrome de Estocolmo”, quando o abusado tem algum tipo de dependência psíquica por seu abusador. O mesmo se pode dizer da relação entre Donny e Darrien, que o abusa sexualmente. Nos dois casos, a relação de abuso é evidente. O que não é evidente é o tipo de “lucro libidinal” que Donny retira dessas relações.
A análise moral da série é dificultada por sua própria construção narrativa, na forma de “autoficção”. Desde o início o espectador é avisado de que se trata de um “caso real”. E o caso aconteceu com o próprio autor, roteirista e ator da série, Richard Gadd. No mundo literário, onde o termo autoficção tem origem, esse modo narrativo costuma ter 3 dimensões: a do autor (e pessoa histórica), a do narrador e do personagem. Quando vai para o mundo audiovisual, entretanto, a situação se complexifica pois outra dimensão se adiciona: a do ator. Muitos parecem acusar o autor Richard Gadd de se aproveitar de uma situação vivida para retratar o abuso que supostamente sofreu, tornando a figura de sua abusadora como possuindo uma psicopatia criminosa. E, de fato, uma suposta mulher (Fiona Harvey) deu entrevista à televisão assumindo-se como a pessoa retratada na série como Martha, mas dizendo que ela foi descrita na série de forma exagerada e enganosa. 
No entanto, até que ponto Richard Gadd é Donny e Fiona é Martha? Na autoficção cinematográfica, a pessoa histórica se desdobra em várias figurações: o roteirista que escreve uma história, o narrador que a conta, o ator que a interpreta e finalmente o personagem que vive na história. Essas dimensões são chamadas de “níveis diegéticos” na teoria literária. Esses vários níveis separam personagem e pessoa histórica. Por isso, muitos espectadores estão julgando Donny no lugar de Richard, ou talvez Richard no lugar de Donny. Estão julgando os sentimentos do personagem como se fossem do autor, ou estão julgando as palavras do narrador como se saíssem da boca de Richard, quando saem da boca do ator. 
No caso literário, a posição do narrador gera a figura do “narrador não confiável”. No caso da série temos um “ator não confiável”, que diante das câmeras ficcionais vive sua experiência de interpretar uma vítima de perseguição. Mas ele não interpreta uma vítima e sim um ator que eventualmente foi alvo de perseguição. No entanto, habilmente a série desconstrói todo vitimismo do personagem ao ilustrar a relação de cumplicidade entre Donny e Martha. Muitos ficam decepcionados ou com raiva dessa relação, que parece muitas vezes masoquista, sem perceber que Gadd é um ator que interpreta outro ator que está em busca de atenção. E na série, ele, o personagem, realmente consegue esse momento de holofotes e celebridade que tanto perseguiu. No entanto, o que é mais interessante é que o sucesso estrondoso da série da Netflix também dá a celebridade a Richard Gadd, e não como aquele que foi abusado, mas como o hábil roteirista que com concisão soube prender a atenção, como o ator que desempenha convincentemente seu papel. 
No final das contas, é a vitória do espetáculo e da ficção que parece realmente interessar, mais do que a suposta história do abuso. O espectador quis ver a representação estética de uma história de abuso e sofrimento, mas o que realmente assiste é a arte nos ensinando a transformar a experiência vivida em algo interessante por ser mais complexo do que julgamentos maniqueístas.

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Fabulação Especulativa

Experimentos Mentais, por Guilherme Preger, engenheiro de Telecomunicações, escritor e autor de Fábulas da Ciência (ed. Gramma, 2021), Rio de Janeiro